Os doentes celíacos estão obrigados a uma dieta isenta de glúten. Este é, aliás, o único tratamento eficaz para quem sofre desta patologia. Um artigo da médica Inês Bento, especialista em Medicina Geral e Familiar.
O que é a doença celíaca e como se caracteriza?
A Doença Celíaca é uma doença crónica autoimune do sistema digestivo, que resulta da incapacidade de tolerar uma substância chamada gliadina, que está presente no glúten. O glúten é uma proteína que se encontra em alimentos como o trigo, centeio e cevada. Quando os doentes com Doença Celíaca ingerem glúten, ocorre uma resposta inflamatória do organismo, que danifica a mucosa do intestino, resultando em má digestão e má absorção dos nutrientes.
Quais os principais sinais e sintomas associados à doença celíaca?
Os sintomas mais frequentes da Doença Celíaca são digestivos (e surgem mais frequentemente na criança). Consulte a lista abaixo para saber mais:
- Diarreia: o sintoma mais frequente, provocado pela má digestão e absorção dos nutrientes; as fezes podem apresentar gordura e um cheiro fétido característico, pela má absorção das gorduras (esteatorreia);
- Flatulência, Arrotos e Distensão Abdominal: resultam da libertação de gás pelas bactérias intestinais;
- Perda de Peso (nas crianças mais pequenas pode estar associado a atraso de crescimento);
- Dor Abdominal;
- Cansaço/fadiga, pela má absorção e nutrição;
- Entre outros
Outros sintomas que também podem estar presentes, embora mais frequentes no adulto (consultar lista abaixo):
- Anemia, por má absorção do ferro, ácido fólico e vitamina B12 (menos frequente);
- Hemorragias fáceis, por má absorção da vitamina K;
- Alterações Ósseas como Osteopenia e Osteoporose, por má absorção do cálcio e vitamina D;
- Alterações Neurológicas, como falta de força ou dormência, por má absorção do potássio e cálcio;
- Alterações do Comportamento, como Irritabilidade;
- Alterações da Pele, como Glossite, Úlceras Orais e Dermatite Herpetiforme — lesões na pele, com comichão associada, nas áreas dos cotovelos, joelhos e coxas;
- Alterações Menstruais, como ausência da menstruação e ainda Infertilidade;
- Entre outros
Tipologia de doença celíaca e nomenclaturas utilizadas
Em doentes com sintomas mais leves, a doença toma o nome de Doença Celíaca Atípica. Ainda quando a patologia é assintomática, assume o nome de Doença Celíaca Assintomática (ausência de sintomas com testes de diagnóstico positivos).
Diferenciação entre a doença celíaca de outras doenças com sintomas semelhantes
Há várias patologias que partilham alguma da sintomatologia da Doença Celíaca. Por isso, revela-se muito importante fazer um cuidado diagnóstico diferencial. A seguir listamos algumas doenças com sintomas semelhantes:
- Gastroenterite provocada por bactérias ou vírus;
- Doença Inflamatória Intestinal, como Colite Ulcerosa ou Doença de Crohn;
- Infeção por parasitas, com Giardia;
- Linfoma;
- Síndrome de Má Absorção;
- Alterações da Tiróide, como Hipotiroidismo;
- Síndrome do Cólon Irritável.
Tenho um familiar com doença celíaca – Terei maior risco de desenvolver a doença?
A questão a saber neste caso é se a Doença Celíaca tem um componente hereditário importante e a resposta é sim! A prevalência da doença em familiares de primeiro grau (pai, mãe, tio, irmão) é de aproximadamente 10%, pelo que estes deverão ser rastreados. Outros doentes com patologias diversas devem igualmente ser rastreados em relação à doença, Entre eles, destacamos os pacientes que sofrem de: Diabetes Mellitus Tipo 1 (pessoas que usam insulina); Tiroidite de Hashimoto; Síndrome de Down e Deficiência de Imunoglobulina A (IgA). Quaisquer destes pacientes referidos apresentam geralmente uma incidência aumentada de Doença Celíaca exigindo vigilância redobrada.
Qual a frequência de ocorrência da doença celíaca?
Atualmente, a incidência da Doença Celíaca em adultos é mais frequente que em crianças e 25% dos novos casos diagnosticados ocorre em indivíduos com mais de 60 anos. Em Portugal e de acordo com um estudo recente efetuado em 2018, estima-se que 1% da população seja celíaca. A este respeito, acredita-se que no nosso país existam entre 85.000 a 100.000 celíacos por diagnosticar, o que indica que esta é uma doença largamente subdiagnosticada, que merece ser rastreada sempre que o indivíduo apresente alguns dos sintomas referidos acima, ou pertença aos grupos de risco identificados. A Doença Celíaca é mais prevalente na Europa Ocidental e Estados Unidos da América, com uma incidência crescente na África e na Ásia e as mulheres são ligeiramente mais afetadas do que os homens. Ainda a propósito da propensão para desenvolver Doença Celíaca, existem várias teorias sobre o que determina se um indivíduo geneticamente suscetível desenvolverá a Doença Celíaca. As principais teorias incluem cirurgia, gravidez, infeção vírica e stress emocional.
Como é feito o diagnóstico da doença celíaca?
O diagnóstico da Doença Celíaca tem em conta a história clínica (sinais e sintomas já referidos), análises ao sangue e biópsia intestinal. O diagnóstico é geralmente feito em duas faixas etárias – a primeira aos 8-12 meses e a segunda na terceira a quarta década de vida. A Doença Celíaca pode tornar-se aparente em bebés quando iniciam a ingestão de glúten (presente nas papas). Os sintomas da Doença Celíaca podem persistir durante toda a infância se não forem tratados, mas geralmente diminuem na adolescência e reaparecem no início da idade adulta, entre a terceira e quarta década de vida. O diagnóstico definitivo surge pela realização de biópsia intestinal (duodeno), através da realização de uma endoscopia digestiva alta, quando esta mostra atrofia das vilosidades intestinais. No que diz respeito as análises de sangue, é pesquisada a presença de anticorpos que são produzidos pelo nosso organismo na presença desta doença — anticorpos anti-transglutaminase (IgA), o mais utlizado, anti-gliadina (IgG) e anti-endomísio (IgA). No caso do doseamento da IgA é possível que os seus níveis estejam diminuídos perante a presença de Doença Celíaca. Se os valores de IgA forem normais, o doseamento do Ac anti-transglutaminase deve servir como teste inicial. A este propósito, em crianças com menos de 2 anos, este teste deverá ser combinado com o doseamento do Ac anti-gliadina. Todos os testes diagnósticos sanguíneos devem ser realizados em doentes que seguem uma dieta que contém glúten – a dieta sem glúten só deverá ser iniciada após o diagnóstico. Na criança (mas não no adulto), quando os sinais são fortemente positivos e em determinadas circunstâncias específicas, em algumas circunstâncias é possível dispensar a realização de endoscopia com biópsia. Importa mencionar que têm vindo a ser divulgados e disponibilizados vários testes “rápidos” para utilização no contexto da Doença Celíaca. Alegadamente para o seu rastreio e/ou seguimento através da determinação de anticorpos (venda livre, auto-testes, gota de sangue ou saliva, anti-transgutaminase e gliadina) — não se recomenda a sua utilização, pela possibilidade de colocar em causa o adequado acompanhamento clínico. Em qualquer circunstância, os pacientes com Doença Celíaca deverão procurar acompanhamento médico e nutricional especializado. Podem ainda ser usados, em casos específicos, alguns testes genéticos (HLA-DQ2/DQ8).
Outros exames adicionais relevantes em contexto de doença celíaca?
Outros exames importantes – sem carácter de diagnóstico – a realizar em caso de suspeita ou presença diagnosticada de doença Celíaca:
- Análises Sanguíneas: para despiste de anemia e alterações do sódio, potássio, cálcio, fosfato, magnésio e vitamina D;
- Análises das Fezes: para despiste de má absorção das gorduras;
- Densitometria Óssea: para despiste de alterações ósseas no adulto, como osteopenia e osteoporose.
Qual o tratamento recomendado para a doença celíaca?
O tratamento eficaz da doença consiste na realização de uma dieta isenta de glúten – abordagem que deverá manter-se ao longo de toda a vida. Para facilitar a eliminação do glúten da dieta, foram definidas regras no que diz respeito aos rótulos de alimentos “Sem Glúten”. São assim considerados alimentos [SEM GLÚTEN] apenas produtos alimentares que contenham menos de 20 partes por milhão (PPM) de glúten. Este regime alimentar – sem glúten – constituiu um grande passo na melhoria de qualidade de vida dos doentes. Não obstante, é uma opção que se revela mais cara – os alimentos sem glúten tendem a ser mais dispendiosos do que os alimentos com glúten -, e por outro lado é uma opção nem sempre está disponível. A leitura e correta interpretação dos rótulos dos alimentos consumidos é fundamental para o Doente Celíaco. A este propósito, a Associação Portuguesa de Celíacos, criou a classificação dos 3P’s (consultar listagem abaixo com os alimentos Permitidos Perigosos e Proibidos). Os Alimentos Permitidos Podem ser consumidos livremente, pois são naturalmente isentos de glúten. Os Alimentos Perigosos são aqueles que obrigam a uma leitura atenta do rótulo, podendo conter glúten na sua composição, e os Alimentos Proibidos são aqueles para os quais devem ser encontradas alternativas, uma vez que estes contem glúten na sua composição:
Alimentos proibidos a doentes celíacos:
- cereais com glúten;
- pão;
- bolos;
- bolachas;
- barras e iogurtes de cereais;
- pizza;
- alheira;
- panados;
- cerveja;
- whisky;
- entre outros;
Alimentos perigosos para doentes celíacos:
- queijos;
- iogurtes;
- preparados de carne;
- refeições prontas;
- conservas;
- aperitivos;
- entre outros;
Alimentos permitidos a doentes celíacos:
- farinha e derivados de arroz;
- batata;
- milho e quinoa;
- frutas;
- legumes;
- leguminosas;
- carne;
- peixe;
- ovos;
- marisco;
- azeite;
- vinho;
- sidra;
- entre outros.
Porque é uma questão recorrente, refere-se o caso particular da aveia: após um período inicial de prevenção, a aveia pode ser reintroduzida na dieta dos doentes com Doença Celíaca sob cuidadosa monitorização. Pela enorme restrição alimentar a que estão sujeitos, poderá ainda haver a necessidade de suplementar a dieta dos pacientes celíacos, particularmente os níveis de ferro, ácido fólico, cálcio, vitamina D. O doente celíaco deve ser incentivado a praticar exercício físico regularmente e evitar o consumo de álcool e tabaco. A resposta à dieta sem glúten é geralmente rápida e os sintomas melhoram em 1 a 2 semanas. Embora a maioria dos doentes responda bem a uma dieta sem glúten, existem sintomas persistentes/recorrentes que podem afetar até 20% dos doentes. Nesses casos pode ser necessário realizar terapêutica medicamentosa recorrendo a corticóides ou tratamentos biológicos (ciclosporina, azatioprina).
Estão ainda a ser desenvolvidas novas abordagens, tais como as que recorrem a variantes do trigo, suplementos com enzimas que ajudam na digestão do glúten e vacinas, que induzam no indivíduo a tolerância ao glúten.
Qual é o prognóstico da doença Celíaca?
O prognóstico para doentes com Doença Celíaca corretamente diagnosticada e tratada, com dieta isenta de glúten, é excelente. Já o prognóstico para doentes que não respondem à dieta sem glúten e ao tratamento com corticosteróides é geralmente um pouco pior. O doente celíaco apresenta um maior risco de complicações tais como como linfomas e cancro digestivo (esófago, pâncreas, intestino delgado e cólon). Embora raramente letal, a Doença Celíaca não tratada é debilitante pela sua capacidade para afetar vários sistemas no organismo. Dos casos particularmente críticos referimos as mulheres em fase de gestação e os adolescentes: As mulheres grávidas não tratadas apresentam maior risco de aborto espontâneo, parto prematuro e malformações fetais; nos adolescentes com Doença Celíaca não tratada é frequente a baixa estatura, uma vez que esta doença impede a correta absorção de nutrientes, fundamental para um normal crescimento e desenvolvimento.
Qual é a diferença entre a doença celíaca e a alergia alimentar?
Muitas das alergias alimentares são transitórias. Tal acontece porque o organismo vai ganhando tolerância ao alimento para o qual desenvolveu inicialmente a alergia, sendo relativamente normal a sua resolução em 3 a 5 anos. No caso da Doença Celíaca estamos a falar de uma doença crónica. Também os mecanismos imunológicos envolvidos são diferentes: no caso da alergia alimentar não existem défices nutricionais, nem alterações ao nível das análises sanguíneas (anticorpos negativos) e da biópsia intestinal.
Que tipo de apoios os doentes celíacos poderão ter?
Segundo o Ofício Circular n.º 20.179 de 10/07/2015, emitido pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), referente à Reforma do IRS 2015, as despesas com a aquisição de produtos específicos para celíacos são consideradas despesas de saúde desde que os produtos sejam adquiridos num dos setores de atividade respeitantes a estas despesas, sejam devidamente justificadas por receita médica e a respetiva fatura seja comunicada no Portal das Finanças.
O meu filho apresenta o diagnóstico de doença celíaca, o que fazer?
Deixamos-lhe abaixo algumas estratégias para lidar com os desafios da vida de um Doente Celíaco:
- É importante encarar a situação com naturalidade, tentando não transmitir ansiedade e preocupações ao seu filho;
- Fornecer à escola e professores todos os esclarecimentos necessários sobre a doença, bem como o tipo de alimentação que o celíaco deve seguir de forma a que este siga a dieta e não se sinta discriminado;
- Os pais não devem proibir as saídas e convívios dos filhos, mas sim informarem-se e tomarem todas as precauções (enviar alimentos sem glúten, esclarecer os amigos e famílias não celíacas da situação…) para que a criança/adolescente possa sentir-se seguro e confiante;
- Quando efetuar refeições fora de casa (restaurantes, casas de amigos, hotéis, viagens…), é conveniente esclarecer pessoas e instituições sobre os cuidados a ter com a alimentação sem glúten;
- Nas crianças mais pequenas, que ainda não compreendem o diagnóstico, quando não lhes é permitido comer determinado alimento que outra criança, amigo ou irmão, estão a comer, é muito importante oferecer sempre outro alimento tão semelhante quanto possível mas que ela possa comer;
- Nas crianças mais velhas, é importante dar a informação essencial e responder às questões – se houver alguém na família que tenha alguma restrição alimentar, deve utilizá-la como exemplo;
- Ensinar a dizer “não, obrigado” quando oferecerem algo que não pode comer. Se não tiver a certeza de que pode comer, não comer;
- Organizar as férias e viagens ao estrangeiro – levar os alimentos e confecionar em casa ou procurar saber onde adquirir alimentos sem glúten – habitualmente as associações de doentes de cada país podem facilitar este tipo de informação.
Um artigo da médica Inês Bento, especialista em Medicina Geral e Familiar e diretora clínica da Clínica Médica do Porto.