“Beber café faz mal ao coração”. “Bebe álcool? Vai morrer novo, porque o coração não aguenta”. “Só podes comer três ovos por semana”. Quem nunca ouviu estas (e outras) teorias sobre a relação entre alimentos específicos e o risco cardiovascular que atire a primeira pedra. Estas ideias têm passado de geração em geração. Mas serão todas verdadeiras?
Em declarações ao Viral, o cardiologista José Pedro Sousa, do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil e membro da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, expõe o que se sabe sobre a relação entre o café, os ovos, o chocolate e o álcool e o risco cardiovascular.
O café e o risco cardiovascular
José Pedro Sousa começa por explicar que o impacto da alimentação no risco cardiovascular é “bastante difícil de se estudar”, visto que “todos comemos mas nem todos sabemos o que estamos a comer”.
São vários os alimentos que, ao longo dos anos, têm sido associados a serem prejudiciais para o coração. É o caso do café, tradicionalmente relacionado com um “aumento do risco cardiovascular, e, em particular, de arritmias cardíacas”, aponta o médico ouvido pelo Viral.
No entanto, não há “evidência científica robusta” que sustente essa associação, refere José Pedro Sousa. Aliás, o “consumo moderado de café” apresenta um “potencial de redução do risco arrítmico”, explica.
Por exemplo, um estudo do UK Biobank sobre o consumo diário de café aponta que a ingestão “leve a moderada” estará associada a menor risco de morte.
O café tem diversos componentes e, como tal, pode ter diferentes efeitos. A cafeína é o componente “mais famoso”. Trata-se de uma molécula que estimula o sistema nervoso central ao ativar determinadas áreas do cérebro, adianta o cardiologista.
É também “rico em antioxidantes”, muito dos quais associados a uma “melhoria genérica do perfil de risco cardiovascular”, reforça.
Por outro lado, os componentes menos benéficos serão “os diterpenos”, que incluem o “cafestol”. Estes compostos “foram já associados a hipercolesterolémia”. Neste sentido, o café deverá ser “o mais filtrado possível”, de forma a “reduzir a concentração de diterpenos”.
Em suma, o consumo moderado de café – de 2 a 4/6 cafés por dia, no máximo – é recomendado, tendo já sido “associado a uma redução dos riscos arrítmicos e até da mortalidade em geral”.
No entanto, José Pedro Sousa alerta que o consumo excessivo de café (superior a 4/6 por dia) deve ser evitado, sobretudo, por doentes com “perfil de risco cardiovascular aumentado”.
Os ovos e o risco cardiovascular
Os ovos são tradicionalmente associados a riscos para o coração devido à “grande quantidade de colesterol que têm, sobretudo na gema”. Na verdade, as “recomendações europeias apontavam para o consumo de até três ovos por semana”.
No entanto, essa recomendação “tem vindo a ser questionada”, aponta o médico do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil.
Isto porque, no “metabolismo do colesterol”, a “maior parte (dois terços) é sintetizada endogenamente” e apenas “um terço tem origem em fontes alimentares”, esclarece. Destas, o principal componente “não é o colesterol”, mas outras formas de gordura, como a saturada e a trans.
Ou seja, apesar de terem uma grande quantidade de colesterol, os ovos são “pobres” em gorduras saturadas e trans, que são, provavelmente, “as duas piores formas de gordura de sempre”. Dessa forma, o impacto na colesterolemia não é significativo.
Além disso, o ovo é um alimento “bastante rico” e uma “excelente” fonte de proteínas, minerais e vitaminas, considera o cardiologista. Assim sendo, é considerado “seguro” comer um ovo por dia, adianta.
Na mesma linha, um estudo sobre o impacto do consumo de ovos na saúde não encontrou “associações significativas entre o consumo de ovos e [o aumento dos] lípidos no sangue, a mortalidade ou os principais eventos cardiovasculares”.
O chocolate e o risco cardiovascular
Chocolate negro, branco e de leite. Os diferentes chocolates têm “diferentes composições químicas” e, por isso, o impacto na saúde cardiovascular também vai ser diferente, aponta José Pedro Sousa.
O consumo prolongado de chocolate negro, que é mais rico em cacau, parece poder levar a uma “redução da incidência da doença cardiovascular major”, sobretudo de enfarte agudo do miocárdio ou doença coronária.
Porquê? O especialista em cardiologia explica que este tipo de chocolate tem sido associado a uma redução da tensão arterial e da insulino-resistência.
Ainda assim, algumas composições químicas do chocolate são mais saudáveis do que outras para o coração.
Nas mais saudáveis, o médico destaca os polifenóis e os flavonóides. Os últimos atuam como “vasodilatadores”, reduzindo a resistência vascular periférica, ou seja, “permitem que o sangue circule melhor”.
Por outro lado, os chocolates podem apresentar grandes quantidades de açúcar e de gordura saturada, o que pode levar a um aumento de ingestão calórica e, consequentemente, do peso corporal e da hipercolesterolemia, alerta.
Em suma, José Pedro Sousa considera “seguro” o consumo “regular” do chocolate negro e pouco processado. A recomendação é de, apenas, “10 gramas” por dia.
“Quanto mais puro for o chocolate, ou seja, quanto mais cacau tiver, melhor será o seu impacto na saúde cardiovascular global”, remata.
O álcool e o risco cardiovascular
Quando falamos de álcool, a “história” é outra: a “janela de segurança” é “bem mais estreita”.
O médico do IPO do Porto alerta que o etanol (álcool) presente nas bebidas alcoólicas é um “agente verdadeiramente tóxico” que afeta vários órgãos.
O mais afetado será o fígado: com um consumo excessivo, pode vir a desenvolver “cirrose e, até, carcinoma hepatocelular”.
O coração será também um órgão afetado e pode sê-lo de várias formas.
Por um lado, o etanol é arritmogénico, ou seja, tem um potencial de predisposição a arritmias cardíacas, sobretudo com o consumo “em grandes quantidades num curto espaço de tempo”.
“Existe mesmo uma entidade clínica designada por “síndrome do coração em férias” que faz alusão a esta mesma realidade: a de determinados indivíduos suscetíveis aumentarem o seu consumo alcoólico durante as férias, acabando por desenvolver episódios agudos de certas arritmias, particularmente no que refere à fibrilhação auricular”, acrescenta o mesmo cardiologista.
Além disso, o músculo cardíaco, o miocárdio, pode tornar-se “delgado e pouco vigoroso” e desenvolver uma “miocardiopatia dilatada”, podendo resultar em “insuficiência cardíaca e até por morte súbita”.
O efeito biológico do álcool “varia consoante a pessoa” e o padrão de consumo. Por exemplo, mulheres e asiáticos são “mais suscetíveis de desenvolverem efeitos adversos” pela “maior dificuldade na metabolização do etanol”, indica José Pedro Sousa.
Em suma, a bebida alcoólica “mais segura” é a que apresenta menor concentração de álcool. Por exemplo, o vinho tinto, que é a forma de consumo dominante em Portugal, “será menos tóxico do que a vodka”.
A importância de proteger o coração
José Pedro Sousa explica ao Viral que há dois tipos de doença cardiovascular: a major/clínica e a minor/subclínica.
O enfarte agudo do miocárdio, também conhecido por ataque cardíaco, assim como o AVC (também chamado de trombose) e outras “situações agudas” (como tromboembolias pulmonares) fazem parte da doença cardiovascular major.
A doença cardiovascular major é a “principal causa de morte no mundo desenvolvido”. Além disso, no que diz respeito ao Acidente Vascular Cerebral (AVC), mesmo que não seja fatal, pode “deixar sequelas e incapacidade para o resto da vida”, alerta o cardiologista do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil.
Em Portugal, o enfarte agudo do miocárdio e o AVC são “uma das principais causas de morte”, aponta um documento do Serviço Nacional de Saúde.
De acordo com a World Heart Federation, 85% das mortes por doença cardiovascular no mundo deve-se a enfarte agudo do miocárdio e AVC.
Por isso, reduzir o risco cardiovascular “devia ser um dos grandes objetivos” do Governo, das organizações públicas e das instituições de saúde, conclui José Pedro Sousa.
Este artigo foi desenvolvido no âmbito do European Media and Information Fund, uma iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian e do European University Institute.
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