Exaustão, irritabilidade, sentimento de derrota face ao trabalho. Isto, apesar de adorar o trabalho e aquilo que faz. Nega o perigo associado aos sinais que o corpo lhe dá e prossegue. Eles podem indiciar que está a entrar em burnout, o primeiro alerta para o que pode vir a ser um quadro de doença mental grave. A propósito do lançamento do livro “Burnout – Guia Completo de Prevenção e Tratamento”, estivemos à conversa com a sua autora, a psiquiatra Maria Antónia Frasquilho.

Escreve no seu livro que “é necessário ser bem preciso na definição de burnout”. Qual a melhor definição que nos pode dar? 

Burnout é uma síndrome, ou seja, um conjunto de queixas [sintomas] e de sinais observáveis que ocorrem juntos que traduz um processo desajustado de interacção do trabalhador com o trabalho, com níveis de sofrimento crescentes por má gestão do stresse.   Na fase final, a que corresponde o diagnóstico mais criterioso, manifesta-se por um conjunto de três características, a tríade Exaustão, ou seja, o esgotamento físico e emocional; Despersonalização, com distanciamento afetivo e perda da Realização Profissional, o que se traduz na insatisfação e quebra no desempenho.

Portugal está entre os países da União Europeia com maior risco de burnout. Encontra razões na organização do trabalho/social/familiar que expliquem esta realidade? 

É verdade que há pesquisas que destacam Portugal como na primeira posição quanto a risco de burnout ao nível da União Europeia, e outros que revelam que estamos também em posições cimeiras quanto ao número de pessoas já afetadas pela condição de burnout. Estes cálculos foram feitos tendo por base o índice de felicidade mundial de cada país, o salário médio anual e as horas de trabalho semanais. Ora, Portugal não está bem classificado, pois os índices de felicidade do seu povo são baixos, tal como o são os salários, e é dos países europeus com jornadas de trabalho semanais mais longas. Contudo, a situação é de muito mais complexo entendimento. Portugal também replica primeiras posições na Europa quanto a queixas de stresse negativo, quanto a prevalência de doença mental, nomeadamente depressão e ansiedade. Questões como equilíbrio entre a vida pessoal e a de trabalho são por cá pouco cuidadas, havendo carência de apoios sociofamiliares a quem trabalha.  Sobretudo, ainda são dominantes culturas de presentismo, de valorizar aquele trabalhador que sempre se submete, acrítico e lisonjeador das chefias.  A nossa mentalidade é o de parecer bem, mais do que ser estruturalmente uma pessoa integra em consonância com a realidade, mas também com os seus valores e necessidades. Há demasiadas queixas de conflitos no trabalho e permissividade para situações de abuso moral no trabalho. O trabalhador português não é suficientemente interventivo na participação social responsável para a promoção de um trabalho e de uma vida boa.  Também se reporta que portugal é um dos países com mais preconceito quanto a doença mental e em que o acesso a serviços terapêuticos efectivos e diversificados é mais difícil e onde se investe menos em prevenção, enquanto a literacia em saúde deixa bastante a desejar.

Se a definição de burnout ainda deixa a desejar, é bem mais difícil medir com rigor o sofrimento, a felicidade e conceitos muito pessoais como bem-estar no trabalho. Deveríamos estar menos focados nestes rankings de quem é o pior classificado, e mais investidos em defendermo-nos do que já está comprovado conduzir ao burnout, tal como promover tudo o que nos defende do mesmo.

De “enamorado” a “esturrado” face ao trabalho. Estes são os dois “e” nos antípodas do caminho para o burnout, tal como os descreve no seu livro. No total o caminho faz-se de 13 “e”. Em que momento deveríamos perceber que nos aproximamos do precipício? A “fritadeira” como a apelida.

É possível detetar indícios desde muito cedo. Em Portugal, costumam passar despercebidos porque a cultura laboral é de muitas horas e cada vez mais exigências sobre quem vai respondendo positivamente. A entrega apaixonada e inteira ao trabalho é incentivada.  Essa é uma cultura que não só devora as vítimas como elogia quem mais tempo resiste ao calvário. Não é que a paixão seja má, ela não pode é durar tanto tempo, com tanta intensidade que consuma o apaixonado. Um cliente meu, perfeccionista, defensor do dar tudo por tudo na profissão, com uma necessidade obsessiva de desafios galopantes, ainda assim resistente ao sofrimento e com excelente êxito laboral, foi recrutado para exercer numa excelente posição na Noruega.  O salário era formidável, tal todas as restantes condições de trabalho e de acolhimento individual e da familia.  Tinha-me consultado por ansiedade e explosões de mau feitio que lhe traziam problemas, estando a evoluir muito favoravelmente.   Ficou exultante com a proposta.  Liga-me ao fim de algum tempo no novo trabalho e diz-me o seguinte: “Sabe o que me aconteceu? Comecei a trabalhar cheio de gana, a querer mostrar que estava totalmente comprometido.  Depois do inbording, ao fim de uma semana fui logo advertido. Ficava no escritório uma ou duas horas para lá do horário de saída que era às 16h00.  Pareceu-me estranho passar a portaria e notar o edificio vazio. Ao sexto dia de trabalho, o meu superior chamou-me e perguntou-me se eu estava a ter dificuldades em realizar a tarefa, ao que respondi que ‘não’”.  – ‘Então qual a razão de estar a sair tão tarde?’ – insistiu.   Eu expliquei que era por estar motivado e que realmente estava totalmente empenhado em fazer a diferença para melhor. – ‘Pois não queremos isso!’ – respondeu o norueguês – ‘Queremos trabalhadores que sejam efetivos no seu horário de trabalho, mas que além disso sejam cidadãos com uma vida pessoal, familiar e social plena, satisfatória. Que preservem o tempo de descanso para que se possam manter ativos produtivos e saudáveis’”.

Em concreto, no que respeita aos indícios, quais são?

Em termos pessoais há muitas mensagens que o corpo e a mente vão dando e que há que escutar: queixas físicas, palpitações, tensão alta, dificuldades digestivas,  diarreias, boca seca, um aperto na garganta, tensão muscular, dores  em múltiplos locais, um maior e diferente cansaço, perturbações do sono e do apetite, nervosismo,   inquietação, dificuldade  em  desligar do trabalho, falta de vontade de se divertir, perda da libido, falta de paciência para com os outros, isolamento, irritabilidade, sensação de mal-estar, de que se está a exagerar, que coisas simples estão mais custosas de atingir. Problemas de atenção, memória, de decisão. Começo de uso de psicoativos, álcool ou drogas para aguentar. Tudo isto são alertas nas primeiras fases. Escute-se. E seja também uma sentinela para os seus colegas. Há que abrandar ou parar antes de rebentar.

Escreve no seu livro que “o burnout é penoso para as pessoas, mas são tremendos os seus efeitos no sistema de trabalho”. A que efeitos se refere? 

Um ativo em burnout é como um vírus, pode contaminar toda a empresa.  As perdas são possiveis para todos.  Desde questões relacionais com presentismo, menor disposição para trabalhar em equipa, deflagração de tempestades emocionais competitivas e agressivas, de crescente mau ambiente relacional por atitudes de não cooperação, de oposição. Passando por retaliações contra a boa imagem da empresa e até quanto à integridade dos seus membros. Problemas de assédio moral são possiveis, quer contra a vítima de burnout, quer desta contra aqueles que representam a empresa. E ainda diminuição da qualidade do que é produzido, ocorrência de erros, incidentes críticos, acidentes graves. Há perdas sérias de produtividade, perdas por rotatividade, perdas por absentismo quando a doença ganha e em consequência mais despesas de recrutamento, de formação. A insatisfação pega-se realmente. Depois da implosão, a tal triade exaustão, despersonalização e insatisfação, pode ocorrer a “perda do sentido de si” associada ao desespero e a não haver nada a perder. Então, tudo é possivel: atos intempestivos agressivos, destruição de património, entrada em processos de litígio com reclamação de danos, suicídios. Por isso a degradação da saúde mental dos trabalhadores é uma das maiores preocupações dos gestores porque configura uma ameaça ao desenvolvimento dos negócios num horizonte já curto.

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